The Midnight Gospel: a metamorfose humana diante da morte

A morte é um fenômeno curioso: ela é abstrata, afinal, quando finalmente alcançamos a sua experiência empírica, não mais existimos para relatá-la; por outro lado, ela é concreta, afinal a esperamos, ainda que não saibamos quando irá ocorrer. É, paradoxalmente, um mistério sem mistério, o inesperado esperado. O que pode nos ajudar a reconciliar com esse conceito? O que compreender enquanto aguardamos a derradeira hora? Questões como essa invadiam a minha mente enquanto eu assistia ao The Midnight Gospel (TMG).

Lançado esta semana, no dia 20 de abril, TMG é um projeto ambicioso assinado pelo Pendleton Ward, criador de duas animações de sucesso, Hora de Aventura (2010) e Bravest Warriors (2012). Essa série mescla uma narrativa surreal e fantástica com clipes do longevo podcast (380 episódios!) The Duncan Trussell Family Hour, apresentada por – como título indica – Duncan Trussell, protagonista também do programa. Ambientada num planeta extraterrestre, Clancy (Duncan em inglês, e Fábio Lucindo em português brasileiro) é um apresentador do espaço-cast “The Midnight Gospel”. Aparentemente lúcido e centrado num primeiro momento, com perguntas intrigantes aos seus convidados, desvendamos um pouco mais de Clancy ao longo dos oito episódios da animação.

O desenho, com sua aura sobrenatural e misteriosa, dispõe de cenários únicos, adentrados pelo Clancy através do Simulador de Realidades Alternativas. Por meio da sua máquina, ele consegue conhecer terras assoladas por zumbis, prisões de alma, planetas alagados, ou dimensões medievais, só para citar algumas. São situações bizarras com personagens ainda mais estranhos, porém, curiosamente, isso está mais empurrado para o plano de fundo. Sendo a adaptação de um podcast real com a proposta de dialogar com convidados, em cada capítulo o protagonista entrevista uma personalidade diferente e esse bate-papo franco vem à frente, questões sobre morte e espiritualidade ganham terreno, deixando os visuais mais como suporte narrativo para as conversas realizadas no programa.

Essa miscigenação psicodélica de mídias funciona de maneira muito orgânica, oferecendo um terreno vívido para reflexões. A história, ainda que dada mais sutilmente como detalhes, é rica com os seus comentários referentes à natureza humana. Clancy aparenta estar fugindo o tempo inteiro de algo, seja sua família, da morte, do reconhecimento da sua mediocridade, encontrando algum escapismo no simulador – o qual tem o formato de uma vagina, talvez representando algum tipo de renascimento em outra realidade.

Por todos os oito episódios, senti que contemplava uma experiência extremamente íntima, um momento de comunicação genuína e espiritual, muito particular e pessoal. A própria narrativa não faz questão de separar claramente os limites entre Duncan e Clancy, gerando metassignificado ao diluir os limites entre a realidade do desenho e a nossa. Em um dado momento, a mãe de Duncan/Clancy é entrevistada, e essas fronteiras em mais nenhum instante foram ainda mais turvas.

Em entrevista ao portal Bleeding Cool, Trussell relatou a experiência de ter sua mãe como convidada em seu programa. Segundo ele, três semanas depois ela faleceu.

“Eu não consigo assistir àquilo sem chorar e me sentir meio que enfeitiçado e impressionado com a minha mãe talvez pressentindo [seu fim] quando ela decidiu que queria [participar do podcast] porque quando ela estava morrendo era meio que se eu não quisesse ter aquele papo. Não porque eu não queria ter a conversa, eu só não queria lidar com o fato que aquela provavelmente seria uma das últimas vezes que eu falava com minha mãe. Então, para mim, é simplesmente incrível. Ela estava morrendo e disse, ‘Por que não fazemos? Vamos lá, vamos gravar um episódio.’ Então nós gravamos e, é claro, eu não fazia a mínima ideia de que [o podcast] acabaria se tornando um desenho animado na Netflix e ser televisionado para montes e montes de pessoas. Então, para mim, tem algo muito poderoso no fato de que minha mãe se transformou em algo como um dente-de-leão, e agora ela está sendo espalhada pelo vento.”

Eu honestamente não sabia o que esperar quando comecei a assistir The Midnight Gospel, só tinha ideia dos seus visuais oníricos pelos trailers. Fiquei encantada pela sua genuína alma humana, sua ausência de respostas claras para questões pessoais, e seu coração extremamente íntimo. A vida é uma jornada com parada certeira, ainda que sem hora exata, e eu aprecio muito a delicadeza que Ward e Trussell desenvolveram esse diálogo com a audiência.

A mortalidade é uma sombra que fica pairando sobre as nossas cabeças a vida inteira, dançando entre pesadelos, sonhos, e lembranças. Transformamo-nos mesmo sabendo do destino final, convertemos em pessoas diferentes a cada dia. Obrigada, The Midnight Gospel, por se atentar à beleza da vida apesar (e por causa de) sua finalidade.

Você pode assistir à série completa de The Midnight Gospel pelo serviço de streaming da Netflix.