Quando nós somos crianças, o mundo tem uma dimensão inteira que somos incapazes de adentrar. Não temos experiência o suficiente para compreender as implicações daquele nível de realidade. Não temos aquilo que pode ser classificado como nuance. Talvez mamãe e papai não se gostem tanto como nas fotos do seu casamento. Talvez aquele seu parente que ri alto e caminha tropeçando tenha problema com algum líquido estranho. Talvez não seja normal ser tratado pelos seus familiares como você é. Crescer significa encarar todos esses detalhes sórdidos sobre uma luz mais crua e Moral Orel foi capaz de explorar essas sutilezas como nenhuma outra produção conseguiu.
Moral Orel (2005) é uma série de animação em stop motion (controlando fantoches, ao invés do quadro-a-quadro desenhado tradicional) do Cartoon Network, originária do seu bloco adulto Adult Swim – porém, infelizmente, sem jamais aportar em televisões brasileiras. A história, aparentemente simples à primeira vista, aborda as aventuras do jovem Orel Puppington, um garoto cristão extremamente devoto e ingênuo, que tenta seguir os ensinamentos religiosos à risca. Sua primeira temporada é bastante formulaica: Orel assiste a algum sermão na sua igreja, entende errado a lição, faz algo completamente absurdo, e apanha do seu pai como uma forma de moral. É repetitivo, simplório, até o momento que desmancha o padrão estabelecido. É aí que a arte nasce.
Cimentado em cinismo e humor extremamente negro, o desenho explora temáticas adultas com maestria: abandono, violência, aborto e, acima de tudo – em ponto central – hipocrisia. O criador Dino Stamatopoulos (Starburns em Community e produtor do excelente Anomalisa), como um mestre titereiro, estabelece o conflito humano desde o primeiro episódio – quando Orel invoca uma horda de zumbis por acidente – e aos poucos os grandes comentários sobre sociedade vão se revelando, as estruturas se colidem umas com as outras conforme o rapazinho apenas aprende a crescer.
Impecável e calculado, o programa estabelece um status quo de desconforto. As risadas estão ali desde a primeira interpretação errônea do protagonista, mas também a desagradável sensação de que as coisas não se encaixam como deveriam. Gradualmente, o sentimento de horror surge conforme reconhecemos situações não tão diferentes das nossas na fictícia Moralton. Revelando-se como uma rede complexa de tramas regadas a mentiras e traumas, Moral Orel mergulha no incômodo para extrair do espectador empatia por aqueles personagens imperfeitos e tortos cujo cotidiano é um desastre.
A série infelizmente durou apenas três temporadas no Adult Swim. Após uma recepção extremamente positiva do magnífico final da segunda temporada, Nature, os executivos do bloco da programação disseram algo do tipo, “mais por favor!”. Obediente, Stamatopoulos e o resto da equipe produziram Alone – marcado como um dos capítulos mais sombrios de toda a série. O resultado foi descrito tão deprimente que o executivo Mike Lazzo optou por simplesmente cancelar a série, dando apenas treze episódios para a última parte.
Em entrevistas, membros da produção comentaram como havia vários planos para explorar as vidas dos cidadãos de Moralton. Scott Adsit (produtor e voz do Clay Puppington, pai do Orel) comentou até o seguinte: “Bem, nosso grande plano era de, ao longo de cinco temporadas, evoluir esses pequenos fantoches nas pessoas mais realistas na televisão”. Uma pena, no entanto, o pouco que nos foi oferecido (43 episódios e um especial ambientando antes do primeiro capítulo) é excelente, doloroso, perturbador e bastante sensível.
Dado o tratamento infeliz da emissora com o programa, é difícil encontrar cópias legais da série, especialmente no Brasil. Se tiver a oportunidade, compreender inglês, por favor: não deixe passar. É uma experiência única que me faz ainda refletir anos depois de assistir pela primeira vez.
Fechando numa nota alta, Moral Orel desperta emoções conflitantes, alertando-nos para um horror que se esconde sob a superfície hipócrita da sociedade. Entretanto, sem largar do otimismo do seu protagonista, a beleza enigmática do caráter humano também repousa ali. Perfeito em suas imperfeições.