Há muito tempo, quando a Segunda Guerra Mundial ainda sangrava os campos da Europa, um autor britânico escreveu lamentando como a guerra espanhola nunca seria contada em sua plenitude. “História”, concluiu George Orwell, “é escrita pelos vencedores”. Lembro-me agora das minhas classes de ciências humanas no primário, recontando aventuras de outrora sobre os valentes desbravadores do Novo Mundo. Hoje pergunto-me quantas mais aventuras existiram cujas vozes morreram antes mesmo de serem gravadas. Mais do que isso, também me questiono quantas narrativas, mesmo sem participar dos Grandes Eventos Que Aprendemos nas Aulas de História™, podem nunca ser aprendidas.
Façamos uma experiência mental, venha comigo. Vamos imaginar ocasiões marcantes sem que os protagonistas oficiais registrados sejam seus narradores. Aqui um exemplo: a minha mãe, nascida no longínquo ano de 1956, viu a ditadura militar brasileira surgir e morrer. Seu pai, nascido em 1918, atravessou as duas grandes guerras e ainda viu o Muro de Berlim cair. Eles, ainda que não os personagens principais, podem (ou no caso do meu avô, poderiam) relatar suas experiências.
Para onde quero ir com todo esse monólogo? Somos história, você e eu – apesar da nossa mediocridade (ou não né, não sei quem é você). Temos vozes e coisas a relatar, não precisamos ser esses grandes personagens, afinal somos já os trovadores das coisas que acontecem conosco, ainda que afastados do aspecto macro da Humanidade. Somos heróis no micro, e isso já está bom, somos suficientes. Uma boa narrativa reconhece o poder da pessoa miúda e, com muita alegria, garanto que Dorohedoro é uma história competente.
Lançado neste ano, Dorohedoro é a adaptação de doze episódios (e seis OVA) do mangá de mesmo título da Q Hayashida (cujo rosto e nome verdadeiros são desconhecidos). A obra de 23 volumes é ambientada na localidade fictícia do Buraco, um lugar miserável onde os humanos vivem com medo dos feiticeiros de outra dimensão, os quais lá aparecem apenas para desgraçar todo mundo. A série acompanha a jornada para recuperar a memória do gigantesco amnésico homem com cabeça de lagarto chamado Caiman. Ele é acompanhado pela sua melhor amiga de passado misterioso a Nikaido e, juntos, eles matam feiticeiros.
Só aí já é muita coisa, contudo há muito mais para se ver. Do lado da sociedade de feiticeiros, temos En, o líder de uma organização criminosa; Noi, prima albina e musculosa de En e sua segurança particular; Shin, o parceiro igualmente forte da Noi; o covarde e semi-inútil Fujita; a completamente insana Ebisu… O mundo de Dorohedoro é duro, cruel, e recheado de muita violência, todavia – em contraste – o seu elenco é vibrante, engraçado, cujas personalidades transbordam já nos seus criativos designs.
Certa vez eu me deparei com a seguinte descrição para essa obra: “uma música com a letra realmente sombria, mas com uma melodia tão alegre que você quer dançar ao seu som”. É o perfeito sumário de Dorohedoro, encapsulando sua natureza e sua estética macabras além do frescor das situações cômicas bizarras provenientes de interações genuinamente humanas. Onde mais você pode ver dois seguranças da máfia mascarados discutindo o almoço num carro após a matança? Onde mais você pode ver aberrações jogando baseball? Onde mais você pode acompanhar um vilão surtando e transformando uma cidade inteira em cogumelos? Só as dimensões surreais de Dorohedoro podem oferecer esse tipo de entretenimento.
A própria abertura é um excelente indicativo da energia desconexa da obra. Seus visuais psicodélicos associados à abertura Welcome to Chaos pela banda (K)NoW_NAME (também responsável por todos os fechamentos) exalam a pura intensa semiose punk introduzindo o espectador a uma realidade distorcida e agressiva, porém certamente divertida.
Adentrei o caos desse universo ficcional sem saber o que esperar, então achei algo que me recheou de fascínio: diversidade. Seja em seus personagens, cenários, ou filosofias, você pode encontrar um pouco de tudo nos traços distorcidos na expansiva história de Dorohedoro.
Você pode assistir a Dorehodoro pelo serviço de streaming da Netflix.