BNA: Brand New Animal – As políticas raciais

Não querendo soar furry ou algo parecido, mas eu considero animais falantes como um dos melhores recursos narrativos para uma animação. A um nível estrutural, é fácil observar a abertura para uma discussão alegórica e metatextual sobre raças, como elas se encaixam umas com as outras e o preconceito que deriva disso. Em outro nível, é possível fazer piadas com os trejeitos animalescos e como esses se traduzem em costumes humanos. 

Essa é uma prática já antiga, levando em conta as Fábulas de Esopo, cujas personificações de animais foram registrada já no século VII a.C., mas que se reinventa com sucesso constantemente. Isso deu certo com Zootopia, com Beastars, e também com Bojack Horseman – todos esses criando histórias instigantes, cada uma com sua distinta proposta, levando em conta a concepção antropomorfizada. Agora resta julgar se também funcionou com BNA: Brand New Animal.

BNA é a mais recente produção do Studio Trigger, criador também do meu querido Little Witch Academia, de Kill la Kill, e Promare. Após seu anúncio na segunda metade do ano passado, fiquei extremamente curiosa. Já havia amado Beastars, e cada notícia sobre essa série antropomórfica de doze episódios me empolgava mais para a sua estreia – essa concretizada em 30 de junho deste ano. 

A obra, ambientada em tempos contemporâneos, acompanha a estadia da Michiru Kagemori na cidade dos ferais (seres animalescos donos de uma forma humana e outra de bicho), Animalia. Outrora uma adolescente normal, por alguma razão desconhecida, ela se tornou uma feral tanuki, portanto considerada um tipo de ameaça para as outras pessoas. Em Animalia, ela investiga a sua nova condição e observa as relações sociais entre ferais dentro do espaço citadino e segregado.

BNA leva a sua idealização de selva urbana a sério, compondo uma arquitetura que leva em conta a ecologia multicultural de qualquer megalópole. Animalia, afinal, é vibrante, cheia de diversidade, criando um terreno até verossímil para conflitos de classe. Michiru pode até ser a personagem mais importante da trama – conhecemos essa cidade a partir dos seus olhos – no entanto, é a cidade com suas infinitas faces e cores que protagoniza a história. Isso foi, aliás, um cuidado explicitado no seu desenvolvimento.

Em uma entrevista realizada pelo portal Otaquest, o roteirista Kazuki Nakashima foi perguntado sobre quais discussões foram realizadas sobre a retratação da cidade. Em resposta, ele ofertou o seguinte relato.

“O Diretor [Yoh] Yoshinari e outros produtores foram aqueles os quais imaginaram a ambientação de ‘um mundo com ferais’. Inicialmente, os ferais se espreitavam na escuridão do mundo onde os humanos vivem e criam seu próprio espaço único, e a história seria sobre uma garota que nada sabia sobre os ferais rondando aquele mundo. Entretanto, eu achei que seria melhor tornar a sua cidade mais aberta de forma que a estrutura social da comunidade feral fosse mais explorada, então criei o cenário de ‘Animalia’.”

Isso se traduz nos enormes arranha-céus, nas ruas lotadas, no puro caos comunicativo dos seus habitantes. A construção de mundo elabora uma alegoria competente em pensar uma distinção palpável entre os humanos e os ferais. Os seres animalescos, os quais são vistos inicialmente como “os outros” por Michiru, desmistificam uma narrativa hegemônica de selvageria: eles são gente, ainda que animais, ora!

Eu não esperava a delicadeza que foi usada ao pintar essas questões sociais – os vestígios de problemáticas profundas mais do que arranharam a superfície na sua abordagem franca. A animação energética oferecia essas informações de maneira rápida em todos os seus aspectos, traduzindo a sua mensagem de multiculturalismo e diversidade com clareza e intento genuíno.

E, pelos céus, que animação! Mais uma vez Trigger entrega algo subliminar com seus excelentes designs característicos e peculiares, cenários criativos, e história emocionante. O lobo Shirou Ogami também é ótimo – um feral cínico com ódio a humanos – complementando o ponto de vista idealístico da sua parceira Michiru.

Se eu puder reclamar de algo é da sua resolução corrida. A equipe tinha tanto a dizer e se amontoou nos episódios finais. Acredito que, se houvessem mais três ou quatro episódios, a narrativa teria sido concluída com uma resolução mais satisfatória. Dito isso, o desenho é uma obra estonteante, capaz de tirar o fôlego em certos momentos.

No momento histórico marcado por conflitos sociais e conscientização de direitos em que estamos vivendo, BNA é uma produção extremamente atual, reflexo da convergência multicultural urbana própria da globalização. Aqui, a diferença não é só explorada como celebrada. Não importa qual sua raça, qualquer um pode encontrar seu lar em Animalia.

Você pode assistir a BNA: Brand New Animal inteiro pelo serviço de streaming da Netflix.