A ideia de inserir personagens que nos são contemporâneos em contextos muito diferentes dos nossos não é nova. Lewis Carroll abordou o surreal em Alice no País das Maravilhas já em 1865. Mark Twain imaginou um americano médio do final do século XIX na Inglaterra do século VI em Um Ianque na Corte do Rei Artur. Repetidamente, nós humanos produzimos e escolhemos narrativas que nos insiram, através de um personagem “gente como a gente”, em mundos muito além da nossa realidade. Que mal há nisso?
É um tipo de escapismo saudável: uma breve fuga de dimensões através de uma produção de entretenimento. Em um mundo como o nosso – atravessado por pandemia, preconceito, e uma crise econômica sem precedentes – mais do que nunca um isekai parece uma boa pedida. Levando tudo isso em conta – além do meu fascínio por simuladores de fazenda – comecei a assistir a Ascendance of a Bookworm. Esperei por um Dr. Stone mais light, mas não esperava por algo tão sem inteligência.
Nem sempre a gente pode ter o que quer.
Ascendance of a Bookworm (2019) é a adaptação de 26 episódios (e dois OVAs) de uma série de light novels, publicada por Miya Kazuki desde 2015. A franquia acompanha o renascimento da aspirante a bibliotecária Urano Motosu no corpo da frágil criança de cinco anos Myne. A ávida leitora, após a sua irônica morte (soterrada por livros), acorda em um ambiente medieval onde a leitura é um hábito de rico, inacessível para sua nova família pobre e iletrada. Teimosa e decidida, Myne intenciona produzir livros ela mesma, introduzindo suas ideias modernas e estrangeiras ao seu novo lar.
Quando descobri essa série, admito, fiquei muito empolgada. Dr. Stone havia acabado não há muito tempo, e eu me sentia órfã. O crítico de animações japonesas, Geoff Thew do Mother’s Basement, lançou um vídeo sobre os desafios da protagonista em produzir papel e fiquei intrigada. A própria thumbnail chamava a animação de “O Isekai Mais Inteligente”. Não tinha como não ser nada menos que especial. Depois de ver tudo, posso confirmar que sim, é muito especial. Não, não é especial de um jeito bom. Sim, já cancelei a minha inscrição ao Mother’s Basement.
Verdade seja dita, a história – até o ponto de publicação daquela crítica – era promissora. Havia a dificuldade da Myne de não entender as idiossincrasias mágicas do novo mundo, ela era doente, sua família era pobre. O problema foi quando ela começou a conquistar as coisas através de seu conhecimento já-existente, removendo o senso de perigo e tornando a narrativa previsível. A animação já não era especial – com designs medíocres e movimentos limitados – e a história rapidamente ficou no mesmo nível.
Eventualmente, é revelado que a doença da Myne chama-se “Consumação”, causada por excesso de poder mágico – levando-a ao caminho elitista eclesiástico, o qual pode usar sua imensa mana (sim). Nesse momento, o desenho passou de médio para ruim, tornando a dificuldade de sua protagonista como uma maneira de se destacar muito acima de todo o resto do elenco. Sim, ela é uma gênia inventora rica membra de uma guilda e sacerdotisa dotada de muita mana, como ela pode te irritar mais? Os outros personagens ou a amam e respeitam profundamente ou são preconceituosos elitistas incapazes de ver seu brilho. Sem personalidade definida, o elenco serve apenas como ferramenta para engrandecer Myne, e não para desenvolver uma narrativa de qualidade.
Sem história competente, animação razoável, ou mesmo personagens cativantes, por que eu vi até o derradeiro final? Por que eu me sujeitei a esse espetáculo de ruindade que nem abertura boa tem? Acho que não há resposta satisfatória, nem para mim ou para você, que consiga explanar meu interesse numa trama que definhava sua premissa a cada episódio.
Talvez eu só seja obcecada por animações ruins de fantasia.
Apesar de tudo, você ainda pode assistir a Ascendance of a Bookworm pelo serviço de streaming da Crunchyroll.