Acordar. Comer. Trabalhar. Dormir. Acordar novamente. Uma rotina, embora forneça estrutura para o cotidiano, oferece um modo de viver mecânico e automatizado em boa parte do tempo, especialmente se você for membro da força de trabalho convencional. Meramente sobreviver ante um sistema que suga as suas energias para escapá-lo é o dilema do adulto em pleno século XXI e também a força-motriz de Aggretsuko.
Retsuko (no Brasil, Agatha Paulita) é uma panda-vermelha funcionária do setor de Contabilidade em uma empresa em Tóquio. Extremamente passiva e sob constante estresse, a jovem senhorita encontra refúgio das suas frustrações no karaokê, onde ela canta suas agonias no ritmo de Death Metal. Começando como uma mulher profundamente estressada, ao longo dos episódios ela descobre novas maneiras maduras de lidar com as decepções diárias.
Originalmente lançado como uma série de 100 curtas (Aggressive Retsuko) em 2016, a premissa obteve bastante sucesso no Japão com suas piadas rápidas e relacionáveis – a ponto da Sanrio desenvolver para o Netflix um seriado de comédia. A sua natureza deveras humana, apesar dos animais engraçadinhos, rapidamente obteve uma ótima recepção, se estabelecendo com êxito como mais uma animação de qualidade do serviço de streaming.
Não sabia o que esperar ao selecionar o título no catálogo, de verdade. Como mencionei no meu texto sobre Brand New Animal, considero a representação de situações humanas executada por bichos um excelente recurso narrativo por causa das possíveis alegorias e tudo mais, e estava curiosa para ver como Aggretsuko aplicaria essas ideias. Com seu foco ímpar na comédia, o desenho estabelece desde o primeiro momento seu ritmo cômico em situações cotidianas próprias da vida corporativa na cidade grande. No segundo momento, entretanto, seu sutil drama é revelado com delicadeza, e a verdadeira beleza da obra desabrocha.
Mais do que uma protagonista de comédia situacional, a Retsuko é uma mulher que soa real embora seja uma criaturinha peluda com surtos de agressividade. Ela se esgota, tem ambições e objetivos, lida com frustrações e, ainda melhor, cresce com as suas experiências – as quais, aliás, são verossímeis. Quem nunca lidou com um colega puxa-saco ou um superior que parece completamente desconexo da realidade? Ela muda com o mundo ao redor e ainda o transforma enquanto presente nele.
Houve um cuidado real dos desenvolvedores na criação de cenários plausíveis, baseando muito do seu conteúdo em indivíduos e acontecimentos reais. O próprio diretor, Rarecho, comentou o seguinte em uma entrevista para o Netflix: “Um exemplo de inspiração baseado em experiência…? Lembrando agora, a história em que Retsuko foi trabalhar calçando sandálias no primeiro episódio: eu já fiz isso algumas vezes.”
O elenco também é bem diversificado, cada um trazendo algo diferente para o universo. Por exemplo, o extremamente popular Haida (aqui dublado pelo Diego Marques), o hiena, é um sujeito apaixonado pela protagonista. Seria muito fácil fazê-lo cair em cenários óbvios de ciúmes e sabotagem, porém, o tempo todo há o estabelecimento de limites saudáveis e de respeito mútuo. Todos os personagens criam um senso de profundidade, o que só enriquece a trama.
A animação em si é um pouco limitada em termo de movimentos, contudo isso apenas segue o padrão Hello Kitty (muito fofo apesar de restrito) estabelecido pela Sanrio – o que, por sua vez, não significa que não existam instâncias mais animadas ou cenários cativantes. Mais do que isso, essa estética corrobora a ideia do cotidiano exaustivo do ambiente corporativo, aproveitando ao máximo a moção um pouco travada.
Diante de circunstâncias as quais não prevalecem o desenvolvimento individual, Retsuko desabrocha com a sua caótica energia violenta com a pura força de vontade de dar o seu melhor. É uma excelente pedida para quem está ainda descobrindo seu lugar no mundo – o que é o meu caso.
Contando com já duas temporadas e um especial de natal, a terceira está a caminho no dia 27 de agosto. Mal posso esperar.