Como a rosa-do-deserto que desabrocha no Sahel africano, A Ganha-Pão (ou Breadwinner) pinta um pouco mais o cenário do Oriente Médio. Ambientado no Afeganistão, o longa-metragem de animação é assinado pela diretora irlandesa do excelente Secret of Kells (Uma Viagem ao Mundo das Fadas, no Brasil), Nora Twomey. Nessa trama, acompanhamos a jornada de sobrevivência da pré-adolescente Parvana num país dominado pelo Taliban.
A Ganha-Pão é um filme canadiano-hiberno-luxemburguês de 2017 baseado no livro homônimo da autora canadense Deborah Ellis, a qual baseou o seu cenário em uma entrevista concedida por uma mãe afegã cuja filha vivia praticando bacha posh (mais a frente mais detalhes). Para a realização da sua obra, Ellis passou meses recolhendo depoimentos de mulheres em campos de refugiados sobretudo no Paquistão. Talvez por isso, as cenas presentes na película sejam dotadas de uma verossimilhança tão crua e honesta.
O filme, através de traços delicados e cores quentes, conta a história de Parvana (Saara Chaudry), uma menina de 11 anos que mora no Afeganistão antes da invasão estadunidense de 2001, e após a guerra contra a União Soviética, que durou de 1979 a 1989. Numa nação culturalmente rica, contudo arrasada em outros aspectos, a garota vive com sua família do jeito que pode.
Em um país onde as mulheres não possuem o direito individual de ir e vir, Parvana não tem liberdade, a menos que esteja acompanhada de um homem. Seu pai, Nurullah (Ali Badshah) – um ex-militar com deficiência motora – representa sua janela para o mundo. Como menina, ela não tem permissão de frequentar um ensino formal e como ele precisa de ajuda para se locomover, nas suas saídas com seu pai ela pode aprender sobre tudo. Quando Nurullah é levado preso pelo Taliban, é como se os poucos direitos que ainda restassem fossem eliminados. Algo teria de ser feito.
Como a Joana d’Arc outrora vestiu-se de homem para comparecer ao exército, Parvana fantasia-se como o menino Aatish para poder prover para a sua família e buscar por seu pai. O que mais ela poderia fazer? Além de seu pai, sua família consiste de duas mulheres, sua mãe e irmã mais velha, fora o seu irmão bebê. Como ela ainda não havia atingido a puberdade e adquirido os caracteres sexuais secundários, pensou em assumir esse papel masculino. Essa situação de mascarar seu gênero real e um fenômeno muito comum no Afeganistão. Conhecido como bacha posh (traduzido literalmente como “menina vestida como menino”), é um processo o qual garotas são criadas por suas famílias disfarçadas do sexo oposto a fim de gozar de liberdades negadas às mulheres. Não somente a protagonista se submete a esse método, a sua melhor amiga Shauzia (Soma Bhatia), também se camufla.
A reportagem de 2018 “A vida das garotas criadas como meninos no Afeganistão” da National Geographic aborda essa prática e, de acordo com a diretora da organização Mulheres pelas Mulheres Afegãs, Najia Nasim: “Essa tradição permite que a família evite o estigma social associado a não ter nenhum menino. [Meninas bacha posh] podem sair para fazer compras sozinhas, buscar suas irmãs na escola, arranjar um emprego, praticar esporte e ter qualquer papel masculino na sociedade”.
No entanto, apesar de pintar um cenário cruel para mulheres no Afeganistão, A Ganha-Pão explora mais fundo do que um nível raso de compreensão das políticas religiosas implementadas no Oriente Médio. Não há somente agonia para Parvana, como também existe esperança de um novo dia e de rever seu pai. Temas como amizade, família, autonomia, feminilidade, e empatia são abordados com delicadeza na cinematografia dedicada de Nora Twomey e do estúdio irlandês Cartoon Saloon. Com o seu estilo de animação de duas dimensões marcante e fluído além de sonoplastia única, a película tem qualidades técnicas impecáveis, sem contar as atuações de tirar o fôlego, recheadas com camadas de emoções complexas.
A Ganha-Pão é mais do que a jornada de uma menina em busca de seu pai. A trama carrega em si a resistência da vida nas ruínas de uma civilização. Parvana, com sua resiliência, torna-se a própria a rosa-do-deserto que insiste em florescer e mudar a paisagem com sua existência singular.
Você pode assistir a Ganha-Pão pelo serviço de streaming da Netflix.