Discorrendo sobre a importância da família, os acadêmicos Elisângela Pratta e Manoel Santos a definiram como “um grupo social que exerce marcada influência sobre a vida das pessoas, sendo encarada como um grupo com uma organização complexa, inserido em um contexto social mais amplo.” É a primeira esfera social que a pessoa conhece e, por causa disso, os efeitos da sua influência são sentidos ao longo das nossas vidas: nossa família é, portanto, nossa porta para o mundo. No caso de Hyakkimaru, ele já nasceu jogado para fora da porta, como se fosse lixo.
Dororo é uma obra curiosa nessa relação familiar. Publicado pelo próprio Deus do Mangá, Osamu Tezuka, entre 1967 e 1968, o mangá acompanha a jornada do já-mencionado ronin Hyakkimaru, o qual ao nascer tem seu corpo oferecido a 48 demônios pelo seu próprio pai, um senhor de terras, em um pacto em troca de poder. Após a transação – que o deixou completamente vulnerável, sem pele, sentidos ou membros – é descartado num rio e adotado por um médico. Insistindo em sobreviver, ele cresce e, com um corpo falso desenvolvido por seu pai adotivo, parte em busca dos seus membros perdidos. Em suas andanças, ele encontra com o personagem titular, o ladrãozinho órfão Dororo, e, juntos, eles vagam pelo Japão feudal, recuperando os membros furtados enquanto matam as 48 entidades. Dessa amizade improvável, nasce um vínculo forte, quase como uma unidade familiar.
Devo adiantar que não sou fã do mangá original. Ainda que a arte seja fenomenal, com cenários aterrorizantes que aproveitam ao máximo do preto e branco da mídia e personagens com designs interessantes, a história me deixou insatisfeita com seu tom inconsistente. Sem um final conclusivo da aventura – o que é compreensível, tendo em vista que foi cancelado, Dororo termina de maneira abrupta e com muitas linhas narrativas em aberto.
De qualquer maneira, em 1969, o trabalho é adaptado pela primeira vez para a televisão, recebendo uma animação de 26 episódios, a qual recebe um tratamento de certa infantilização, aliviando os aspectos mais sangrentos dos quadrinhos originais. Essa adaptação torna-se então um produto excêntrico: uma justaposição de violência e surrealismo com tons imaturos. A sua abertura ilustra isso perfeitamente.
Cinco décadas depois, no entanto, Dororo finalmente me cativa. Lançada em janeiro de 2019, a animação de 24 episódios começa muito similar às suas iterações anteriores: Hyakkimaru é um ronin em busca do seu corpo vendido por seu pai e Dororo é um ladrão órfão. Todavia, sua narrativa é construída de maneira mais centrada, mais orgânica: os demônios agora são apenas doze; Hyakkimaru tem sua sociabilidade afetada pela forma diferente de como se comunica com o mundo; o cenário feudal japonês ganha mais vida, erguendo a bandeira do tema anti-bélico, enfatizado pelos históricos familiares dos dois protagonistas.
Dororo brilha na conexão entre seus personagens principais e suas interações sinceras e sensíveis. Desvinculados de suas famílias, o ronin pelo abandono e o ladrão pela morte, eles constroem sua própria unidade, essa concretizada pelo afeto e profunda lealdade. Se o passado de ambos é sombrio e marcado pela violência, seu futuro parece mais otimista graças ao seu laço. O melhor de tudo é que os personagens estão vivos, bem longe do status quo e de serem estáticos – eles aprendem a cada novo teste e, no fim, escolhem um ao outro.
Além disso tudo, a cada vez que Hyakkimaru destrói um demônio e recupera alguma parte de seu corpo, os benefícios adquiridos no pacto de seu pai biológico são desfeitos, trazendo tragédias àquelas terras. Isso o põe na mira de sua família de sangue, a qual tenta eliminá-lo antes que seja tarde demais, obrigando-o até a matar em defesa própria, o que apenas alimenta a escuridão em sua alma.
Meio humano e meio monstruoso, Hyakkimaru caminha entre os extremos, a aprender sobre moralidade e os efeitos de suas batalhas. Doce e vivaz Dororo, ligado profundamente às causas humanas, então serve de âncora nos mares de sombras que seu parceiro se perde.
Todos os personagens, na verdade, têm suas motivações e objetivos claros e, na maioria das vezes, seus arcos são bem delineados e verossímeis. É uma narrativa que se aproveita ao máximo de sua continuidade para não deixar pontas soltas e construir um final satisfatório. Os temas emocionam e também levam o espectador à reflexão. A direção de Kazuhiro Furuhashi é sensível e aproveita-se muito da sutileza.
Essa versão da história de Tezuka assume um traço diferente dessa vez, abraçando a modernização de uma série antiga, sugerindo uma nova perspectiva nas temáticas levantadas décadas antes. A animação na maior parte das vezes é muito competente, porém tem seus momentos mais fracos.
Dororo, tão breve como foi, tornou-se um dos meus animes favoritos com sua excelente história de amor, traição, humanidade, e, acima de tudo, família.
Dororo pode ser visto pelo serviço de streaming da Amazon, o Prime Video.