Coco: O poder da memória

Atenção: o texto contém spoilers sobre a trama.

O que nós, seres humanos, somos além das nossas lembranças? O que significa existir sem o acúmulo de experiências? O próprio escritor modernista argentino Jorge Luis Borges foi quem disse em seu poema Cambridge que “somos a nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rompidos.” Mais do que isso, eu penso, vivemos, fazemos história através das lembranças que nós temos e das que deixamos nos outros. Esse, suponho, é o coração de Coco.

Coco (2017) é o décimo-nono longa-metragem lançado pelo estúdio Pixar. Dirigido por Lee Unkrich e Adrian Molina. Vencedor de duas estatuetas do Óscar (pelas categorias de Melhor Animação e Melhor Canção Original), a obra acompanha Miguel Rivera, um rapaz de 12 anos que, diferentemente do resto da sua família, almeja ser um músico ao invés de um sapateiro. Proibido pelos parentes de seguir seu sonho por causa da história do seu trisavô que abandonou a esposa e a filha para seguir carreira musical, ele foge para um mausoléu onde um instrumento está guardado. Quando ele toca o violão do famosíssimo musicista Ernesto de La Cruz, há muito falecido, ele é transportado para o Mundo dos Mortos, de onde ele precisa arrumar um jeito de retornar.

Ambientado no lar de uma família hispânica a comemorar o feriado “Día de los Muertos” (equivalente ao católico “Finados), Coco é uma obra profundamente mexicana, abraçando suas heranças culturais e familiares. A tradição dessa data foca na alegria de rememorar, de guardar perto aqueles que já se foram, e a importância de ainda lembrar esses falecidos é muito marcante na obra. Em entrevista ao The Verge, Unkrich comentou um detalhe que ele foi ensinado durante a fase de pesquisa de produção:

“Nós aprendemos pela primeira vez sobre esta noção de que todos nós podemos potencialmente morrer três mortes. A primeira que é quando nosso coração para, e não mais vivemos. A segunda quando somos enterrados ou cremados, e ninguém mais nos vê. E nós todos temos o potencial de morrer esta terceira e última morte quando não existe ninguém mais entre os vivos que lembra da gente, que nos conheceu. Isso pareceu ser uma ideia tão poderosa e pungente, e nós sabíamos que tinha de ser parte do filme de alguma maneira”.

Tão potente esse conceito foi que acabou tornando-se a alma da narrativa. Miguel, que crê piamente na possibilidade Ernesto ser seu antepassado, é acompanhado pelo atrapalhado e pouco lembrado Héctor. No Mundo dos Mortos, eles demonstram aos espectadores a terceira morte de alguém que acabou de ser esquecido, algo que é explicitamente ainda muito possível para o Héctor, gerando um senso de urgência para a história.

Quando eu comecei a assistir pela primeira vez Coco, não compreendi a seleção do título. Na película, Coco é o nome da bisavó de Miguel, uma senhorinha que já começou a perder funções mentais, em especial a memória. Mais a frente, é revelado que essa idosa é a filha de Héctor, o trisavô que supostamente abandonou a família mas que foi envenenado pelo seu ex-parceiro musical, o próprio Ernesto de la Cruz. No meio dessa novela mexicana, recheada de voltas e mais reviravoltas, observamos no centro apenas ela, Coco. Foi aí que entendi a escolha do nome do filme.

Coco, idosa e quase senil, traduz para os espectadores a importância da lembrança. Em sua fraca memória, seu pai ainda vive, o que possibilitou o encontro de Miguel com Héctor, com o resto de seus parentes mortos, e a reconciliação da família Rivera com a música. Ela é a memória, pura e simples, que aproxima as gerações e mantém viva a experiência, a marca no mundo daqueles que já partiram.

Eu chorei todas as vezes que eu assisti a esse filme. É como os outros filmes do padrão Pixar com aquela animação deslumbrante e um coração sensível, no entanto, acima disso está uma temática cujos desdobramentos me fascinam e me tocam onde mais estou vulnerável. É belo. É trágico. É a alma do existir. Como você gostaria de ser lembrado?