Estou pensando em Acabar com Tudo: Viajando pela Psiquê Humana

Lançado pela Netflix em 4 de setembro de 2020, Estou pensando em Acabar com Tudo é o mais novo filme do diretor Charlie Kaufman (roteirista de Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças) que além de dirigir, assina o roteiro baseado no livro homônimo de Ian Reid.

Num dia frio e com bastante neve, Lucy (Jessie Buckley) encontra seu namorado Jake (Jesse Plemons) para que os dois viajem até a fazenda dos pais dele e conheçam Lucy. Tudo parece muito simples como apenas mais uma viagem do casal, mas logo as coisas deixam de parecer tão perfeitas assim: passamos o filme todo dentro da mente de Lucy, assim como no livro que é contado do ponto de vista dela. Lucy começa a pensar que essa relação não vai pra frente e que ela “está pensando em acabar com tudo”, o que nos leva a crer que ela quer terminar o namoro.

Os dois conversam por muito tempo e a viagem se estende bastante. Isso pode espantar algumas pessoas (fazendo-as até mesmo desistir da película), pois a partir daqui o filme é muito arrastado e se apoia somente nessa troca de Jake e Lucy (além da fotografia que é importante, mas veremos isso mais pra frente). Os dois conversam sobre os mais variados assuntos: poesia, a vida, o trabalho de Lucy… Podem parecer muito aleatórios, mas é importante prestar atenção nesses diálogos porque revelam muito do que está por vir e o maior mistério do filme: o que realmente está acontecendo?

©Netflix

Chegando na casa dos pais de Jake, o casal explora a fazenda. Vendo que o lugar está abandonado e a sensação de que algo está errado – com os animais largados a própria sorte e a casa meio decaída – Jake e Lucy conversam até os pais dele, Suzy (Toni Collette) e Dean (David Thewlis), chegarem. Assim como os pais de Jake, a casa também é estranha e Lucy logo percebe isso, deixando o espectador desconfortável também. Ela desconfia mas não fala nada, ainda repetindo o pensamento de “estou pensando em acabar com tudo”. Talvez as coisas comecem a fazer sentido quando Lucy vê uma foto dela na parede, enquanto Jake diz que é uma foto dele. Aí se revela um pouco do que talvez esteja acontecendo: Lucy é uma criação de Jake, podendo ser outra personalidade. Mas o que acontece depois? Ainda fica a dúvida.

Todos conversam e a atuação de Toni Collette e David Thewlis se destacam – os dois estão perfeitos como personagens esquisitos, passando uma sensação de desconforto para quem assiste. Nesse momento começamos a ficar ainda mais confusos, pois Lucy passa a ter vários nomes como Lucia ou Louisa e também muda de profissão, sendo uma hora pintora, em outra estudante de física, garçonete… A confusão é grande e detalhes são importantes agora: a roupa de Lucy muda, um cachorro surge do nada e a mesa está cheia de comida (mesmo Suzy dizendo que não conseguiu cozinhar).

Mergulhamos a fundo na psiquê humana e na nossa própria existência ao ver o que a velhice causa nas pessoas – Suzy, que já não ouve tão bem e Dean, que está com alzheimer. Depois que os quatro jantam, Lucy explora a casa e os pais de Jake aparecem mais velhos. Suzy aparece doente, depois Lucy a vê mais jovem (um vislumbre do que ela já foi um dia), apenas para depois aparecer à beira da morte, muito doente e sendo cuidada por Jake. Dean também está mais velho e aparece pra Lucy quando ela está no quarto de Jake. Lá ela vê coisas que remetem aos assuntos que eles conversavam na viagem e o que a deixa intrigada é um livro com o poema que ela havia dito que escreveu. Nisso podemos ter uma ideia de que tudo foi criação da mente de Jake, que talvez Lucy seja só alguém que ele conheceu, mas que os dois nunca se envolveram.

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Depois disso, Lucy e Jake seguem viagem, já que ela precisava trabalhar. O vazio da estrada e dos lugares nos passa uma sensação de vazio também. Jake decide parar pra comprar sorvete mas a sorveteria de beira de estrada é isolada e as funcionárias agem de maneira estranha (duas delas riem de Jake e vemos o quão desconfortável ele fica sendo julgado). A outra atendente serve Lucy e fala que ela não precisa seguir em frente, o que a deixa desnorteada. O fim da viagem do casal é a escola onde Jake estudou. Lá ele joga fora os copos de sorvete e some, deixando Lucy sozinha no carro. Ela então resolve ir atrás e encontra somente um zelador, limpando o local. Nisso, temos a volta daquele homem do início do filme, que não sabíamos quem era: é o Jake, só que mais velho!

A história é bem vaga em explicar o que acontece, deixando tudo num tom mais lúdico. Quem leu o livro talvez tenha um entendimento melhor, mas o filme é uma forma de arte que se sustenta sozinha também, sendo a visão de Charlie Kaufman do livro.

Na reta final, nos demos conta que Jake é o zelador e Lucy existia apenas na cabeça desse senhor mais velho e solitário – é triste porque o filme aborda isso: nossa existência e a solidão humana. Quando Lucy diz que nem lembra como Jake é, nos mostra a falta que ele teve de alguém que lembrasse dele e se importasse.

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A beleza visual do filme ajuda a contar a história. As roupas de Lucy que mudam sutilmente ajuda a perceber que ela é mesmo uma criação de Jake e está sendo mostrada a nós através das memórias do Jake zelador, por isso seu nome também muda assim como seu trabalho. Jake já não consegue se lembrar direito e as informações mudam a todo momento. Outro detalhe importante é a fotografia e o enquadramento, principalmente na viagem do inicial. A cada vez que Lucy fala, ela está sentada ou enquadrada de forma diferente, mostrando a confusão mental de Jake ao criar esses diferentes cenários. O clima é soturno (a fotografia tem tons muito escuros) e ao mesmo tempo lúdico, parecendo um sonho porque estamos a todo momento na mente de Jake e não na de Lucy, como pensávamos.

As cenas finais misturam uma bela sequência de dança, mostrando mais uma vez o que poderia ter acontecido entre Jake e Lucy e sendo uma parte bem poética. Logo vemos somente o Jake zelador em seu carro… Fica subentendido que teria cometido suicídio e o “estou pensando em acabar com tudo” era ele pensando, através de sua outra personalidade, que talvez não valesse mais a pena viver e que deveria dar fim à própria vida. No fim, vemos Jake se apresentando no palco do colégio e todos o assistem, mostrando o seu desejo interior: ser reconhecido.

Estou pensando em Acabar com Tudo é uma viagem pela psiquê humana, mostrando as dores e desejos de uma pessoa, sendo um filme que nos deixa com um sentimento pesado até. Ele também lida com múltiplas personalidades, sendo bem difícil de entender. Muito poético e criativo, combina com o estilo de Kaufman sendo um filme típico do diretor/roteirista – lembra até um pouco Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Quem gosta desse estilo de narrativa, vale a pena dar uma chance.