Tokyo Godfathers: O que devemos uns aos outros?

O que nos faz pertencentes a Humanidade? O que nos faz coexistir nesse globo azul viajando a quase 30 quilômetros por segundo e, ao mesmo tempo, dar um senso vago de comunidade por pertencermos à mesma espécie? A ética (do grego éthikos, “modo de ser”) é uma filosofia moral aplicada que pode nos ajudar a responder essa pergunta. Ética corresponde a reflexões sobre o comportamento humano que dizem se uma ação é positiva ou negativa. O que nos faz agir em boa ou má fé? O que nós devemos uns aos outros? Esse, meus amigos, é o coração de Tokyo Godfathers.

Lançado em 2003, é o terceiro filme do aclamado diretor Satoshi Kon, falecido em 2010. A história acompanha três sem-tetos em Tóquio que encontram um bebê na lixeira na véspera do natal e, tentando encontrar os pais da criança, eles entram em problema atrás de problema. Diferentemente dos filmes anteriores de Kon, Perfect Blue (1997) e Millenium Actress (2001), Tokyo Godfathers pertence à realidade material, afastando-se do onírico, então aproveitando-se para desenvolver uma narrativa cheia de comentários sociais.

Satoshi Kon/Imagem de divulgação

Em entrevista à Anime News Network em 2008, Kon comentou um pouco sobre suas escolhas criativas: “Eu sabia que se eu criasse os protagonistas como sem-tetos, ficaria a questão se havia (ou não) uma mensagem para a sociedade atrás da obra. Eu percebi isso. No entanto, a parte importante não era apenas apresentar o problema dos sem-tetos no roteiro, mas focar na mentalidade ao redor das coisas que ‘descartamos’. Essas são pessoas que foram ‘descartadas’ da sociedade; os indigentes, a garota que foge de casa. Na sociedade japonesa, os direitos civis que os cidadãos têm são poucos em quantidade. Eu queria examinar como alguém separado da comunidade convencional uma vez mais a rejuveneceria.”

Ao encontrar a recém-nascida, a ex-drag queen Hana, o alcóolatra Gin, e a adolescente fugida de casa Miyuki se desdobram para prover as necessidades dessa vulnerável. Eles não tem muito, mas se preocupam com o futuro dessa criança que, naquele momento, nada tinha. Eles são muito diferentes, vindo de lugares muito diversos, com suas próprias questões psicológicas e cicatrizes, no entanto ligam genuinamente uns para os outros. Eles brigam, discordam, porém há um senso verdadeiro de lealdade e comunidade no seu mundo separado da sociedade principal.

Eu me lembro de que na primeira vez que eu assisti a esse filme, eu me dobrei de rir com os absurdos em cena. O filme é antes de tudo uma comédia, apesar dos seus temas mais sensíveis, e faz muito bem o seu trabalho cômico. Nas vezes seguintes, entretanto, pude notar com mais critérios a sua crítica social e os assuntos delicados abordados: violência, preconceito, prostituição, abandono, entre outros.

Com uma sensibilidade impressionante, Tokyo Godfathers faz o espectador rir e chorar com seus personagens desenvolvidos magistralmente e sua trama envolvente. A animação é simplesmente estupenda assinada pelo estúdio da Madhouse, apresentando uma fluidez excelente de movimentos e um timing impecável para a emoção mostrada na cena. A história é bem amarrada, com um roteiro muitíssimo bem escrito.

Nós humanos coexistimos em um mundo que está lentamente ruindo por consequência do que fizemos com ele, tornando-o excludente, ainda que habitável. Estamos todos nesse barco que está afundando, e tudo que podemos fazer quanto a isso é erguer a mão ao próximo, assim como três sem-tetos fizeram a um bebê na véspera do natal.