Retrato de uma jovem em chamas: o poder do olhar

Retrato de uma jovem em chamas é um filme de drama histórico escrito e dirigido por Céline Sciamma e protagonizado por Noémi Merlant e Adèle Haenel. Lançado na França dia 18 de setembro de 2019, o filme foi indicado a vários prêmios, ganhando o de Melhor Roteiro no Festival de Cannes.

Marianne (Noémi) é uma pintora na França do século 18 que recebe a tarefa de pintar um retrato da jovem Heloise (Adèle) que está prestes a se casar. Sem que Heloise saiba, Marianne passa seus dias a observando, agindo como uma simples acompanhante, e fazendo seu retrato. Não demora muito para que as duas se aproximem cada vez mais, começando um romance.

Começando pelo roteiro, ele é uma história original muito criativa escrita pela diretora, que teve como inspiração criar uma história de amor. Não só sobre o amor, mas a memória de um amor. Isso se reflete no fato de o filme ser contado pelo ponto de vista de Marianne. A personagem fala no presente sobre a sua história no passado com Heloise. Vemos tudo pela perspectiva dela, como artista e como mulher. É possível perceber o desenvolvimento dos sentimentos dela por Heloise, e o quanto a outra mulher impactou sua vida.

©Lilies Films & Pyramide Films

A história é de uma leveza admirável, e a diretora/roteirista usa muito bem a arte, tanto a pintura quanto a literatura, para expressar o amor. Uma parte marcante é quando as personagens principais estão lendo um livro, e a história diz muito sobre os sentimentos que estão crescendo entre Marianne e Heloise.

A fotografia do filme aproveita as belas paisagens da França, principalmente quando se trata das cenas aonde o mar aparece. Além da paisagem, quando as cenas são a noite, a luz de velas dá um destaque especial a tudo, principalmente na silhueta e rostos das personagens.

O filme é cheio de sutilezas e é aí, principalmente, que se destaca o olhar tanto de Heloise quanto de Marianne, assim como a interpretação das atrizes principais, que conseguem dizer muito, mesmo quando não há fala alguma. A importância do olhar já está presente logo no início do filme, na primeira cena de Heloise com Marianne. A cena começa com Heloise caminhando com suas costas viradas para Marianne. É claro que a jovem não quer ser vista, literalmente, pois, como disse sua mãe para Marianne, “ela se recusa a posar”, querendo dizer que Heloise não quer ter seu retrato pintado.

O por quê de Heloise não querer que façam um retrato dela é algo muito importante no filme. Negar-se a posar para o retrato é a forma de Heloise negar também o casamento arranjado para ela, um destino que foi deixado para ela por sua irmã, que supostamente cometeu suicídio pois também não queria se casar. Heloise não quer ser vista e não quer o destino que lhe foi emposto, não aceita a imagem premeditada que as pessoas tem dela. Imagem esta que, significantemente, é ligada também ao olhar masculino, já que, antes de Marianne, quem havia tentado pintar o retrato de Heloise havia sido um homem. Algo que também é significativo é o fato de Marianne colocar fogo no quadro que o homem havia pintado de Heloise. Também é importante o fato de o retrato não ter rosto, remetendo ao fato de Heloise não ser realmente vista pelas outras pessoas.

O desenvolvimento do olhar do artista sobre sua modelo, então, é um tema central no filme. No início, Marianne desenha Heloise em segredo, tentando observá-la sem que a outra perceba. Isso gera uma tensão entre as duas e uma troca de olhares bem significativa. Isso marca o início de um interesse que Marianne desenvolve por Heloise e vice-versa. Marianne quer tentar entender Heloise sem se envolver com ela e sem que Heloise saiba de seu interesse. Isso faz com que o primeiro retrato que Marianne pinte de Heloise não a agrade. Depois de contar a verdade sobre ser uma pintora, Marianne mostra o retrato a Heloise, que também não gosta do que vê. Ela ainda provoca Marianne, dizendo que falta vida alí, e Marianne revida dizendo que há técnicas e convenções as quais Heloise não entende, o que faz um paralelo com as convenções que são impostas a Heloise, como o seu casamento arranjado.

©Lilies Films & Pyramide Films

Após destruir o quadro, Marianne decide pintar um retrato melhor e, a partir desse momento, as personagens se tornam cada vez mais próximas. Heloise resolve que posará para Marianne e o interesse de uma pela outra só vai aumentando. Nas cenas que se seguem, Marianne fala sobre coisas que ela notou sobre Heloise. Pega de surpresa, Marianne percebe que não é só ela que estava observando Heloise, mas que a outra mulher também a estava observando, notando até mesmo as pequenas coisas sobre ela. Heloise até mesmo chega a dizer para Marianne ficar ao seu lado, colocando-a no lugar de Heloise, mostrando que Marianne também estava revelando coisas sobre si mesma para Heloise. As duas passam o filme todo trocando de lugar, Marianne é a pintora e Heloise sua musa, mas os papéis se invertem, pois a afinidade que elas formam se torna mais forte que as convenções que a sociedade impõe, principalmente se tratando de um relacionamento amoroso entre duas mulheres.

A importância do olhar se mantém até o final do filme, quando as personagens precisam finalmente se separar. Quando o quadro de Heloise está pronto, ela e Marianne param e observam-no juntas e é como se as duas tivessem pintado o quadro juntas. É triste e bonito também quando Heloise se pergunta quando se sabe que um quadro está pronto e Marianne diz que uma hora é preciso parar, fazendo um paralelo direto a relação das duas, que uma hora precisava chegar ao fim. Quando o filme chega a suas últimas cenas, Marianne está no presente de novo e conta que voltou a ver Heloise mais uma vez, mas as duas estão longe, dentro de um teatro e ouvindo uma orquestra tocar. O espectador sofre junto com Marianne, porque Heloise não nota sua presença e não olha para ela. Tudo o que resta da história e para Marianne é a memória de que esse amor um dia existiu.