A Frequência Kirlian: o horror íntimo que se esconde nos detalhes

Qual é o tipo de terror que mais apavora? Talvez essa pergunta crie muitas respostas distintas. Para uma pessoa sensível ao sangue, talvez gore ou slasher, com sua violência exacerbada a fim de causar desconforto. Quiçá seja sobrenatural, o qual atiça a nossa curiosidade do insólito. Ou mesmo talvez os pessoais e sutis thriller e psicológico causem uma reação mais adversa. O que assusta uma pessoa é muito particular e parte de suas experiências de vida, impossível prever o que pode-

Ei?

O que é isso atrás de você, leitor?

Hah, brincadeira. Mas você consegue entender por onde estou indo, certo? O inesperado pode nos causar medo pois é um caminho não trilhado, deixando-nos desconfortáveis e despreparados para o que pode estar pela frente. Dito isso, como ardente odiadora do horror (o ato de sentir medo, não o gênero, conforme afirmei aqui), e covarde profissional, eu gostaria de argumentar que a narrativa mais rica do horror é aquela que, ainda híbrida – mesclando muitos subgêneros – foque numa ambientação que irá perseguir o espectador por muito tempo. A Frequência Kirlian é um perfeito exemplo disso.

A websérie argentina La Frecuencia Kirlian é uma produção animada de seis episódios criada pelo cinegrafista Cristian Ponce. Originalmente lançada pela plataforma online Vimeo, a série foi comprada e então distribuída pela Netflix. Ambientada na pequena cidade fictícia (eu acho) de Kirlian na província de Buenos Aires, a série explora de maneira antológica eventos estranhos e sobrenaturais, enquadrando-os através do programa de rádio titular. Seu misterioso Locutor oferece amparo e cumplicidade aos ouvintes que entram em contato ao mesmo tempo que uma nova faceta perturbadora de Kirlian é observada.

É difícil definir em palavras o que de fato me fascina tanto na Frequência Kirlian. Seus poucos episódios extremamente curtos (entre oito e dez minutos) dão um pequeno gosto do que a mitologia desse lugar inóspito e desconcertante pode proporcionar. Os personagens vêm e vão nessa cidadezinha esquecida pelo tempo. Passageiros e conturbados, eles buscam algum tipo de refúgio na anônima parceria com o Locutor, eternamente sem rosto, uma figura desconhecida ainda que amiga. 

Em uma entrevista ao portal online Gizmodo com o criador e o animador Hernán Bengoa, foi perguntado quais eram as principais ideias na construção da série. Nas palavras de Cristian Ponce, “existe algo sobre o conceito de um personagem perdido na noite, unido a tantas pessoas pela sua voz, mas ao mesmo tempo completamente solitário que eu acho perturbador”. Essa inquietação de Ponce funcionou como uma ótima base estrutural, pois, com a voz reconfortante da figura sem rosto (literalmente) do Locutor, somos atraídos para uma diferente e única dimensão.

Na Frequência Kirlian, a atmosfera se constrói gradualmente, destrinchando com delicadeza um terror sobrenatural muito além do nosso controle. Kirlian é viva, uma personagem que pulsa mais forte a cada história. É uma localidade que enfeitiça com seu sobrenatural rico e enervante, tornando o espectador um habitante desse espaço amaldiçoado, prendendo-o lá. Brilhantemente, a animação acompanha esse fervor narrativo, com cores marcantes, e designs sombrios. Ninguém tem uma face, só conhecemos os olhos de brilho sobrenatural dos personagens.

Existe algo profundamente aterrorizador no desenrolar de um mistério. Você acumula e registra as pistas até que a grande figura se revele para você. É um processo íntimo, bem pessoal do seu raciocínio, afinal vem das suas experiências de vida: é a forma como você processa o mundo, ora! Quando as peças finalmente se encaixam e um pesadelo foi construído, quem você pode culpar além de si mesmo por ver esse horror ser montado pelas suas próprias mãos? Esse pavor que nasce nas realizações de que até o ordinário possa ser conturbado é único, e é justamente o coração malicioso da pequena cidade.

Como uma mariposa voa em direção à danosa luz de uma chama, eu adentro as ruas misteriosas de Kirlian, caminhando em direção do desconhecido como se esse fosse um velho amigo. Espero que você também se perca aqui.

Você pode assistir aos cinco primeiros episódios (dublados ou legendados) de A Frequência Kirlian pelo serviço de streaming na Netflix e o sexto (apenas legendado) através da plataforma do Youtube. Disponibilizo-o aqui embaixo.