Se alguém perguntar a você, caro leitor, o que é a realidade, o que você responderia? Rápido. É o que você vê? Seria o que você sente? Ou mesmo aquilo que você processa mentalmente? Filósofos discutem incessantemente a dimensão do real, se parte do tangível ou do racional, sem alguma pontuação final sobre o tópico. Geralmente seguimos os nossos dias sem ponderar sobre questões metafísicas, questionar a própria realidade até que essa se desmorone e se misture com ficção. Nunca antes alguma outra obra me trouxe tantas dúvidas como Perfect Blue do Satoshi Kon.
Lançado em 1997, o longa-metragem pode ser descrito como uma experiência absurda, extraída de uma estrutura quase delirante, um sonho febril. A obra explora a transição da Mima Kirigoe (Junko Iwao) da sua carreira de Idol (cantora cuja imagem é altamente comercializada pelos seus gerentes, movimentando uma indústria a partir da persona pública) para a de uma atriz. A mudança de profissão, no entanto, não é aceita por todos, e um fã começa a se tornar mais ameaçador, tornando a vida da Mima um inferno de insanidade de tal forma que os limites entre realidade e ficção se desmancham lentamente.
Eu já elogiei um trabalho do Kon anteriormente aqui, e Perfect Blue não é nada menos do que uma obra-prima. Seu filme de estreia ergue com elegância um cenário crível onde nenhuma informação, mesmo para o espectador, é verdadeiramente confiável. Acompanhamos a jornada da Mima através da sua vivência: suas dúvidas são nossas. Numa cadência sofisticada de paranóia, adentramos pelos seus olhos numa espiral de horror, nos tornando tão incapazes como a protagonista de discernir onde começa e termina a realidade tangível da narrativa.
Essa confusão atravessa a obra por toda a sua duração de 1h20min, deixando um final caótico – o qual não vou entregar – sem soluções claras. Em entrevista ao crítico Andrew Osmond, Kon foi perguntado se haveria algum tipo de explicação natural para tudo que ocorre no filme. Sua resposta explana um pouco as suas intenções na construção da história.
“Eu não sei o que você quer dizer com ‘natural’, mas existe uma explicação natural para mim como criador uma vez que eu distingui entre o subjetivo e o objetivo na produção dos storyboards. No entanto, algumas cenas transitam entre sequências de realidade para ilusão, então eu acho que é difícil para a audiência diferenciar qual é qual. Contudo, como eu disse, não é o propósito do filme fazer essa distinção.”
Esse é o ponto da obra: o limiar entre o que nós somos e as expectativas dos outros sobre nós e como esses valores afetam nossa noção de realidade. Quando Mima abandona o posto que outrem queriam que ela ocupasse, manter a sua persona pública adorada como estrela da banda CHAM!, ela começa a se questionar: seria ela boa o suficiente no novo papel? O que é Mima sem CHAM!? Ela ainda vale a pena fora da zona de conforto desconfortável que repousa nas expectativas alheias?
Lá pelos idos anos 60, o filósofo francês Guy Debord lançou seu trabalho A Sociedade do Espetáculo, comentando sobre o fenômeno da glorificação da performance e da imagem na sociedade contemporânea (sobretudo ocidental). Nas palavras de José Arbex Jr., autor de Shownarlismo, “O espetáculo […] consiste na multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum: celebridades, atores, políticos, personalidades, gurus, mensagens publicitárias – tudo transmite uma sensação de permanente aventura, felicidade, grandiosidade e ousadia. O espetáculo é a aparência que confere integridade e sentido a uma sociedade esfacelada e dividida. É a forma mais elaborada de uma sociedade que desenvolveu ao extremo o ‘fetichismo da mercadoria’ (felicidade identifica-se a consumo).”
Mima é essa mercadoria, obrigada a viver interpretando papéis, em abstinência de sua verdadeira identidade. O que pode ser real além da imagem comercializada, vendida? Não há explicação exata, e Kon foi perfeito nesse aspecto. A história, a animação, os designs, tudo corrobora para o caos existencial brilhante desse longa-metragem.
Apesar de ter sua estreia nos anos 90, Perfect Blue se mantém incrivelmente atual, especialmente no contexto das redes sociais, um espaço onde as identidades dos seus membros é inteiramente virtual. Você do outro lado da tela, assim como eu, seleciona tudo aquilo que quer mostrar no fórum semipúblico que é a internet. O que é, afinal de contas, real?