Castlevania: o melódico requiém da destruição

A natureza humana é de uma essência muito complexa, com algumas tendências ao caos. É o que nos torna imprevisíveis, tão bondosos a ponto de fazer a diferença ou tão cruéis, capazes até de levar devastação por onde passemos por razões diversas, seja tédio, ódio, injustiça, ou amor – razões que apenas nós mesmos podemos saber. Foi essa condição humana que o Drácula experimentou no começo de Castlevania e abriu as portas infernais da sua história.

Poster oficial da Netflix

Lançado em julho de 2017, o desenho animado é a adaptação do terceiro videogame da série de mesmo nome, Castlevania III: Dracula’s Curse, o qual acompanha as andanças de Trevor Belmont (Ralph C. Belmondo na versão japonesa) pelo território da Valáquia (uma província real dentro da Romênia). No jogo, Trevor é o último herdeiro do legado de sua família, a qual fora excomungada pela igreja, e o único capaz de derrotar Drácula em sua fúria violenta. Em sua aventura, ele conhece outros personagens os quais viram seus parceiros de time, Grant Danasty, Sypha Belnades, e Alucard, e, unidos, eles derrotam o Drácula.

Capa japonesa do Dracula’s Curse, com um estilo já datado e os personagens irreconhecíveis

Similar, mas não igual, a adaptação expande os conceitos introduzidos no jogo de 1989, carregando elementos de outros lançamentos da franquia, como as origens de Alucard (Symphony of the Night) ou a presença dos Mestres de Forja (Curse of Darkness). Como um monstro de Frankenstein gótico, os desenvolvedores construíram uma criatura única e independente, além de muito violenta e brutal, com os membros roubados de túmulos antigos.

Curiosamente, Castlevania foi um projeto que demorou ao menos uma década até ver a luz do dia. Sua produção começou como uma trilogia de filmes animados, encabeçada pelo Kevin Bolde e roteirizado pelo Warren Ellis. Lenta e gradativamente, o trabalho perdeu força e foi engavetado, guardado até o instante que Adi Shankar tirou o pó e conseguiu um contrato com a Netflix para a exibição, agora como uma série. A recepção foi tão positiva que o serviço de streaming pediu uma nova temporada aos produtores, os quais só tinham planejado duas. Em entrevista ao Collider, Ellis comentou sobre essa experiência:

“A segunda temporada era o final do meu plano original. Aí nós passamos, ou eu passei por um instante feliz e encantador e agradável, que foi quando a Netflix chegou e disse, ‘Nós gostaríamos de uma terceira temporada, por favor’. Aí o encanto, e alegria, e prazer somem e você passa pelo que nós roteiristas chamamos de momento ‘Oh merda’ que é quando você percebe que não tem ideia do que fazer a seguir.”

Independentemente de todos os problemas nesse longevo desenvolvimento, o produto é, e eu não digo isso com leveza, digno de atenção. Com a precisão de um experiente maestro, a história é conduzida na direção de uma linda tragédia, atentando-se à dor dos seus personagens de uma forma bastante verossímil. Por exemplo, o Drácula, no começo, amou profundamente a sua esposa humana Lisa e, com a sua violenta morte pelas mãos da Igreja, ele dá o passo final rumo ao caos destruidor, mergulhado no ódio cegante da sua perda. Não só ele, entretanto, recebe esse dedicado cuidado: todos os personagens que dão as caras, de uma forma ou de outra, são humanizados, perfeitos na sua imperfeição.

A trilha sonora da série é espetacular, com músicas que lembram aquelas usadas nos jogos. As vozes são boas, ao menos em português brasileiro, garantindo atuações convincentes. A animação é nada menos que magnânima, com designs interessantes, movimentos extremamente fluídos em momentos de luta, e sem nunca perder a energia mesmo nas horas mais paradas. O desenho, ainda que baseado numa propriedade intelectual já existente, é um dos programas mais carregados de personalidade que eu tive a felicidade de ver. 

Castlevania é uma tragédia que se estabelece na condição caótica do ser humano de causar a destruição, como o Drácula, e também de buscar a reparação e a paz, como Trevor, Sypha, e Alucard. Entre esses dois extremos, repousa a sigilosa e íntima escolha universal de escolher o seu próprio caminho. Afinal, o que é um homem além de uma miserável pilha de segredos?

Você pode assistir a todas as três temporadas de Castlevania no serviço de streaming da Netflix.