O Menino e o Mundo é, antes de tudo, um tiro no peito. Assisti num primeiro instante despreparada para a amplitude emocional dos seus temas sensíveis e execução singular de sua temática ao redor do descobrimento do mundo e de suas injustiças.
Dotado de um estilo artístico simples, como se simulasse desenhos infantis, o filme brasileiro acompanha o garotinho Cuca que sai do seu ambiente rural e familiar em busca do seu pai, o qual foi para a capital em busca de condições de vida melhores. Como não há algum tipo de narração ou diálogo em algum idioma existente, a narrativa é definida quase somente pelo visual com a utilização de cores e traços de giz ou mesmo de recortes.
Cuca não possui muito em sua casa no interior da América do Sul: seus pais são extremamente pobres, porém a natureza é seu quintal. Os primeiros minutos são marcados pelas cores vibrantes e pelo tom leve da brincadeira do menino conforme ele corre pela floresta.
O tom vagarosamente se altera uma vez que seu pai sai de casa: o lar, agora quieto, torna-se pesado conforme as memórias de seu genitor invadem Cuca. Incomodado com toda a situação, o garoto parte em direção da cidade, ansioso para reunir a sua família novamente. Uma vez em jornada, ele encontra personagens curiosos a trabalhar em diversos níveis dos setores de produção econômica.
Através desses cenários, construídos organicamente, é possível observar uma certa preocupação do diretor, Alê Abreu, em produzir uma narrativa latino-americana. Segundo uma entrevista concedida à revista Veja, o filme não é ambientado em algum espaço geográfico específico. “Inventamos um lugar”, disse ele. Contudo, a realidade social latino-americana se mostra muito presente na narrativa audiovisual. Os ritmos musicais exibidos, a temática de repressão militar, a história dos imigrantes que fogem do seu contexto rural… Ainda que os elementos exibidos sejam inventados, sua existência está pautada em um repertório político essencialmente latino-americano.
Mais do que isso, a gênesis de O Menino e o Mundo está em Canto Latino, um documentário animado sobre a juventude da América Latina a partir das músicas de protestos dos anos 1960 e 1970, o qual nunca foi terminado. Nas palavras de Alê Abreu para o Fora de Quadro: “A história de O Menino e o Mundo começa quando eu estava fazendo um anima-doc que se chamava Canto Latino, em 2008. Era um documentário que pretendia, usando do recurso da animação, fazer uma revisão, embarcar numa viagem sobre a formação da América Latina, países que tiveram todas histórias de infância muito parecidas. […] Esse personagem do filme era um viajante e ele tinha um diário de viagem. Ele fugia de uma ditadura em um país fictício da América Latina e ia pro Eldorado, esse outro país. Estava no meio desse furacão de pesquisas, viajei toda a América do Sul, fiz oficina com crianças nas terras zapatistas e, nessas andanças, eu também carregava meus diários de viagem.”
É nesse aproveitamento do espaço geográfico que O Menino e o Mundo brilha: sem apontar culpa ou glorificar uma área em si, o longa-metragem levanta questionamentos sobre os efeitos das configurações sócio-políticas acarretados nos habitantes de uma região. Ainda que o interior fosse um lugar de inocência e afeto para Cuca, tanto ele como o seu pai partiram dele. A cidade é um lugar cinza, mecânico, quase artificial, porém é possível encontrar cor e vida nela. Nada é exatamente claro, e as metáforas visuais permeiam a história de maneira delicada e efetiva, gerando significado e reflexão.
A película, que demorou por volta de cinco anos para ser completada, estreou em 2013 nos circuitos de arte e oficialmente em janeiro de 2014. A obra conquistou notoriedade internacionalmente com os grandes prêmios do Festival Annecy de Animação em 2014 e o Animafest Zagreb de 2015, além de sua indicação ao Oscar de animação em 2016.
O Menino e o Mundo é uma obra sensível carregada de significados. Seus traços a um primeiro momento simples transpiram a história da América Latina, enquadrada no olhar de uma criança que está aprendendo como o mundo funciona. Na primeira vez que vi esse longa, eu perdi meu ar e me emocionei profundamente com sua história humana, cheia de camadas narrativas. Eu estava assistindo ao filme para um vestibular e, ao contrário de outras obras consumidas na mesma época, essa permanece marcante em minha mente, decerto inesquecível.