Nesse pouco mais de um ano que publico críticas semanais no glorioso Mundo Geek, percebo algumas temáticas mais presentes em meus textos do que outras: fantasia, amizade, engenhosidade, porém, acima desses todos, família. Independente de ser a família sanguínea ou a que escolhemos, esse vínculo se constitui como uma questão pessoalmente importante para mim, o que me faz revisitá-la de tempos em tempos.
Por que não refletir múltiplas vezes na multifacetada, imperfeita, complexa e significativa família? Conforme os membros ou morrem ou se afastam ou integram novos, o conceito pode ser expandido, alterado, melhorado. Assim sendo, introduzo o filme que primeiro chamou a minha atenção a essa temática, Lilo e Stitch.
Lançado mundialmente no ano de 2002, a animação de 85 minutos é fruto da dupla de diretores e roteiristas Chris Sanders e Dean DeBlois (ambos também responsáveis por Como Treinar Seu Dragão). Stitch, ou Experimento 626, é uma forma de vida avançada desenvolvida pelo criminoso intergaláctico Dr. Jumba. Extremamente perigosa, a criatura conturbada foge de sua prisão, acabando ilhado no Havaí, onde é então adotado pela órfã de seis anos, Lilo. O resto, como esse aforismo prevê, é história.
O filme imediatamente foi um sucesso. Desenvolvido com um razoavelmente modesto orçamento de US$ 80 milhões, Lilo e Stitch obteve um retorno de US$ 273 milhões nas bilheterias mundiais – o que eventualmente deslanchou a propriedade intelectual dos estúdios Disney como franquia. A relação entre uma menininha havaiana esquisita e seu alien agressivo conquistou os corações de inúmeros espectadores com seus quatro filmes, três séries (duas delas ocidentais, inclusive), e produtos licenciados. Foi uma empreitada com resultados surpreendentes.
Nas praias à margem do eterno azul do Pacífico, Lilo está prestes a ser levada pelos serviços sociais. Desorientada, isolada desde a morte dos seus pais, ela não sabe como se comunicar com as crianças da mesma idade. Sua irmã, Nani, tenta fazer o melhor para manter o lar unido, manter a salvo o resto da sua Ohana, e isso as leva diretamente ao Stitch, o próprio caos encarnado. Com uma surpreendente inteligência, Sanders e DeBlois criam um cenário verossímil e humano que casa efetivamente com os elementos da ficção científica extraterrestre.
Em uma entrevista ao portal online Animation World Network, os diretores comentaram mais a fundo a natureza heterogênea do filme. Nas palavras de Chris Sanders:
“Eu acho que é um microcosmo próprio do filme, o qual postula que você não pode ter uma cena sensível, uma reconciliação, a menos que atravesse outra cena que seja desconfortável e possivelmente passe dos limites. […] Em Lilo e Stitch, nós queríamos nos afastar [da estrutura familiar tradicional e rígida trabalhada em Mulan] e tentamos formular a coisa mais inapropriada para Lilo e Nani fazerem… Bem, ao invés de lidar racionalmente com as suas frustrações, elas vão gritar uma com a outra, assim como irmãos e irmãs agem de fato. Foi tão libertador fazer esse tipo de coisa.
“Após a briga, Lilo e Nani reconciliam no quarto… É um momento bem delicado em que elas conversam e confessam uma à outra de que elas passaram dos limites e brigaram, e que elas sentem muito. É legal porque nós operamos nesta filosofia de que muitas vezes as pessoas na vida real não simplesmente dizem o que querem. Elas tentam de uma forma diferente, afinal, apenas dizer diretamente é um pouco constrangedor. Então as irmãs tiveram essas cenas maravilhosas em que elas estão pedindo desculpas de verdade uma para a outra por discutirem sem falar simplesmente, ‘Cara, me desculpa. Vamos nos acertar’ ou algo parecido.”
A primeira vez que eu vi esse filme foi num cinema que não existe mais em minha cidade natal. Da mesma idade da Lilo, eu contemplei o espetáculo de emoções (bonitas ou feias) complexas passando na tela, absorvendo, atenta, as ideias de amor, família, e carinho. Animação, naquela tarde de sábado de 2002, tornou-se a minha forma de arte favorita.
Lilo e Stitch é uma obra extremamente especial para mim, cujas cenas estão gravadas nas paredes do meu coração. A animação é fenomenal, com designs imaginativos, trilha sonora estupenda, e uma energia única que poucas obras da Disney conseguem acompanhar.
Um clássico para todas as idades, Lilo e Stitch me levam de volta para a infância, para o colo de minha mãe no velho cinema que não existe mais.