Divinas: A ascendência do fogo

Divinas, de 2016, é um filme fascinante antes de tudo. No sentido mais literal da sua definição, o longa-metragem franco-qatariano causa um forte fascínio no seu espectador, capturando-o, mantendo-o preso aos acontecimentos que desenrolam diante de seus olhos. Como uma chama viva para um inseto, Divinas é um espetáculo devastador para aquele que o vê.

Mais do que um relato de uma realidade mordaz da Paris dos imigrantes, a história se desenvolve na psique conturbada de filhos de estrangeiros: franceses, mas nem tanto. A protagonista Dounia, interpretada pela Oulaya Amamra, encapsula muito bem esse sentimento de limbo entre universos completamente discrepantes, o qual se revela como sua húbris, a sua queda.

Certamente há um caráter autobiográfico centralizado nessa figura complexa de Dounia: a principal realizadora do projeto – sendo diretora e roteirista – provém de um cenário similar. Houda Benyamina é uma cinematógrafa franco-marroquina, e sua vontade de mudar o panorama francês é notória. Em entrevista ao portal francês Allocine, ela afirmou: “Eu gostaria mais se não fosse algo somente dos negros e dos árabes, nós ainda somos franceses – não podemos esquecer. A França hoje em dia tem muita diversidade.” Inclusive, a protagonista vem à vida na pele de sua irmã mais nova.

É um reflexo do cinema contemporâneo de imigrantes esse desejo de desafiar o plano de fundo burguês da Cidade das Luzes. Assim como Abdellatif Kechiche em sua obra de 2004, A Esquiva, não é a Champs-Élysées que é mostrado na tela, porém bairros mais sóbrios, mais amontoados de gente de roupas mais velhas, e que a polícia tende a ignorar pedidos de ajuda.

Contudo, mais do que a ideia de explorar a Paris desigual em tela, Benyamina opta por algo mais simples, todavia bastante efetivo: um conto sobre amizade. Apesar de acompanharmos a película pelo olhar da Dounia, também sentimos a presença constante de sua melhor amiga, a Maimouna – essa interpretada pela Déborah Lukumuena, também descendente de imigrantes, no caso congoleses. Nas figuras dessas duas personagens, o espectador é jogado contra os intempéries de uma vida dura a qual, infelizmente tem de recorrer ao crime.

A obra possui um tom intimista com as conversas extremamente verossímeis, a tela que segue as faces das suas protagonistas, e com seus silêncios cheios de significado. Os ângulos jogavam contra o observador a angústia, a euforia, a confusão, e mais toda a miríade de emoções que as duas amigas viveram nas quase duas horas de filme. Vivemos através delas as experiências de ser marginalizados, desejar algo melhor ainda que através de meios ilegais porque o Estado que supostamente deveria tomar conta e dar oportunidades não o faz.

São situações específicas, mas que o espectador pode sentir empatia porque são as camadas de uma narrativa maior e universal: a da amizade. Mais do que qualquer coisa, o coração da obra está na relação entre Dounia e Maimouna. É importante ressarcir, essa é a verdadeira história de Divinas. A vontade de fugir da realidade hostil ainda é muito presente – é o gatilho de toda a história, afinal – mas a união das duas é o que prende.

Outros temas também são explorados: como a criminalidade – quando elas se alinham à uma gângster (Rebecca, esta representada por Jisca Kalvanda); espiritualidade – com as questões de seu propósito na terra; família – através dos seus desentendimentos intergeneracional; e, incrivelmente, sexualidade – com a descoberta do desejo de Dounia pelo dançarino Djigui (Kévin Mischel). Camadas e mais camadas de sentimentos são explorados numa espiral de acontecimentos que se acumulam e então enfim explodem como um incêndio de uma lixeira.

Divinas ascende como a fumaça cinzenta de uma fogueira, cujas flamas engolem vorazmente qualquer coisa que a toque até que nada mais reste.

Você pode assistir a Divinas pelo serviço de streaming da Netflix